A menina caminhava pelo seu quarto. Perambulava em círculos pela cama esperando a insônia findar-se. Estranhamente tudo era silêncio. Sim, estranhamente, pois de todas as ruas do Recife Antigo, a única que jamais silencia-se é a Rua da Moeda. Lá sempre há os murmúrios ébrios dos perdidos, os gritos da alegria passageira de uma noite regada a cerveja e os diálogos oriundos das transações dos que vendem fuga da realidade aos discretos compradores de ilusões.
Por suas íris amareladas entrava a escassa luz da vela acesa em um altar improvisado cheio de santos remendados, objetos de sua eterna devoção, para os quais rezava as preces de todos os dias: que nunca falte pão, proteção e gin em sua vida, além do singelo pedido perdão dos pecados que cometera e que ainda cometeria. Antes um perdão antecipado que um pecado não remido por esquecimento do pecador.
Parou diante do espelho, longo, de corpo inteiro. Como havia mudado a menina ingênua, assustada e cheia de dores que chegara há cinco anos. Um corpo jovem e esguio de uma mulher completa resplandecia no reflexo dos olhos amarelos. Sua pele de ébano brilhava e cheirava à juventude e pêssegos. Jamais tocada, ao menos voluntariamente, por um homem, seus olhos não conservavam a tristeza perene dos olhos das virgens, mas exalava a frieza e as convicções de uma mulher já feita.
De repente, do espelho saiu uma luz branca que envolveu todo o quarto. A menina sentiu seu corpo suspender-se no ar e ouviu o barulho do espelho partindo-se em milhões de pedaços. De onde estava o reflexo de seu corpo, surgiram rosas e mais rosas.
Um dos ramos cresceu mais e aproximou-se do rosto da menina. Nele, uma lagarta arrastava-se vagarosamente. Parou. Envolveu-se em casulo marrom e as asas amarelas de uma borboleta, do tamanho de um punho cerrado, surgiu, rasgando as paredes frágeis do casulo. A borboleta voou por sobre a menina, pousando depois sobre seu ombro esquerdo.
A menina ouviu o sussurro de um pombo. Olhou para o lado e apenas via o vazio da imensidão branca. Ao tornar a vista para a borboleta, esta não estava mais lá, mas sim um pombo perfeitamente branco que quase confundia-se com a luz. O pombo voou e explodiu em uma imensidão de estrelas douradas.
À sua frente surgiu uma legião de anjos parados e ajoelhados diante de sua figura. Um deles levantou-se, escondendo o rosto com as asas, aproximou-se da menina e disse:
-É chegado o dia da glória da filha do sertão. É chegado o dia do cravo tornar-se rosa. É chegado o dia que a rosa sangrará, ferida em seu próprio espinho. É chegado o dia da gêmea da mulher de Magdala. É chegado o dia da amada do Senhor. É chegado o dia do orvalho novamente molhar a terra seca e dos homens encontrarem consolo para as amarguras da vida, todas oriundas do pecado primordial, que há de sempre acompanhar a cria de Adão. Sim, o consolo virá, mas virá dos braços, das mãos e das dores da filha de Eva. – E o anjo novamente prostrou-se.
Por trás a menina ouviu um choro. Ao virar-se, deparou com uma imagem que vira quando mais jovem em uma igreja. Uma mulher chorava aos pés de um homem pregado em uma cruz. A mulher chorava um choro calmo, mas que deixava resplandecer seu desgosto e, acima de tudo, sua solidão. A mulher beijava os pés do homem, sujando suas mãos e rosto no sangue de um vermelho vivo que escorria por todo o corpo ferido e ultrajado do homem. A mulher recompôs-se, virou para trás, com seu rosto manchado e mãos sujas, olhando para e menina. Aproximou-se e tomou-lhe as mãos:
-Minha gêmea. É chegado o momento dos homens reverem os mistérios dos milagres explícitos. Para eles não basta apenas o milagre da vida. Mas antes – a mulher estendeu-lhe um fruto vermelho, da mesma cor do sangue do homem – o conhecimento. – A menina tomou o fruto e comeu – Agora, a purificação no sangue do Cordeiro.
A mulher conduziu a menina pelas mãos esquerda até o homem crucificado. Diante dele, ao ver a expressão vazia dos olhos já mortos do crucificado, a menina lembrou-se de ter visto esta mesma expressão nos olhos de uma mulher que um dia chamara por mãe, cujo rosto já não lembrava tão bem, pois era apenas uma bruma, um esboço, uma expectativa de lembrança. Jazem os homens, jazem também as lembranças.
A menina fechou os olhos e tocou os pés do homem com os lábios. Podia sentir o sangue, ainda quente, manchar sua boca. Tocou os pés com as mãos e encostou a face nos mesmos, como quem recosta o rosto no colo dos consoladores. Era sangue, vermelho, vivo, como o mesmo sangue que corria em suas veias. O sangue do cordeiro era acima de tudo o sangue de um homem. Quem banha-se em sangue? O que há de pureza no sangue de um homem? Mas a menina não pensava, apenas sentia o sangue que manchava-lhe mãos, faces, boca, braços, cabelos e seios. Olhou para cima para rever o homem. Não era um homem. Não era o sangue de um homem. Era o sangue de uma mulher. Também não era apenas uma mulher. Era o sangue dela mesma. Seu corpo pendia morto na cruz. Era o sangue da menina. Era o sangue de Angeline.
-Porra!-
O quarto cheirava a algo. O quarto cheirava a mirra. O quarto cheirava a morte.