quarta-feira, 14 de abril de 2010

Mistério da Rosa - 7° Mistério - Profeta da Rosa



Naqueles dias andava um homem pelas ruas do Recife. Vestia farrapos do que um dia foi uma camisa roxa, bermuda jeans e um boné, que também um dia foi verde e outros era um roupão azul com divino bordado. Ele carregava nas mãos um longo cajado, um estandarte com uma rosa bordada e os restos mortais de uma bíblia que encontrara no meio do lixo em suas andanças em meio ao bairro da Bomba do Hemetério, sobrevivendo do que catava no lixo e dos centavos que lhe oferecia a caridade alheia, com os quais comprava seus goles de aguardente.

Caminhava pelas ruas, adentrava os metrôs, andarilhava pela praia, bradando sempre em alta voz em meio a ouvidos surdos tão leigos:

-Há de chegar o dia da glória da filha do sertão. Gêmea da mulher de Magdala, aquela que beijou os pés do Nosso Senhor. Ela será banhada no sangue do Cordeiro e surgirá revestida em glória, como a flor do mandacaru, que é doçura em meio a dor dos espinhos. Tocada por um anjo, mas pura como a Virgem Maria, seu nome um dia será esquecido na imensidão do tempo, mas seus feitos estarão nas lembranças dos homens, que espalharão sua história por mais três gerações além desta. Depois, estas lembranças vão secar como o pasto verde no tempo de estiagem, cuja ausência mata o gado e entristece os olhos do homem, ficando na sua cabeça a saudade do frescor do orvalho e do canto da asa branca. No fundo dos seus olhos de gato do mato brilha a chama da fogueira da dor, e este mesmo fogo santo queimará o seu coração, e das cinzas brotará uma pétala de sangue.

Ninguém o ouvia. Tudo no fim era o silêncio. E no silêncio, Damião ouvia a voz do universo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mistério da Rosa - 6° Mistério - Rosa-mãe e seus signos

Já era manhã quando Angeline foi acordada pelas suaves mãos de Edith:

-Bom dia minha filha, dormiu bem?

Entorpecida com o sono que sempre demora-se a deixar de ser um fardo em nossos olhos, espreguiçou-se e respondeu:

-Sim, Edith.

-Não filha. Para você não é e nunca será Edith. Serei sempre sua mãe. Vou perguntar novamente. Dormiu bem, minha filha?

Não é todo dia que canonizamos alguém ao ponto de chamá-la por mãe. No princípio é um jogo de repetição. Uma mulher que olha nos olhos de um bebê e sempre repete a palavra, bem como todos que cercam a criança, em sua frente, abrem mão de um pouco da individualidade da mulher que a tem nos braços e também a chamam de mãe. Então, com o passar do tempo, a criança chamará a mulher por mãe, e apenas ela o fará, todos os outros voltam às antigas alcunhas. É o fim do catecismo. Mas aqui está Angeline em uma terra desconhecida, com suas recentes descobertas sobre qual o tamanho do infinito após ver o mar, com uma mulher que encarnou erroneamente em um corpo masculino exigindo sua beatificação a um posto exclusivo. Diz-se muito que pai é quem cria, mas trata-se de uma prática inaplicável às mães. Um pouco de dúvida, disfarçada pelo sono e, enfim, duas palavras:

-Sim, mãe.

Edith sorriu e respondeu:

-Não foi natural, mas logo você vai se acostumar. Bem, minha filha, nada de gin agora. Café da manhã. Breakfast. Le petit lunch. E depois, programa de mulheres. Vamos às compras. Filha de Edith Stephanie transpira glamour, luxury e beleza. Bem, isso por enquanto, depois você vai transpirar outras coisas, mas tudo em seu tempo.

Angeline não imaginava que houvesse comida no mundo além de farinha, feijão, macaxeira, fubá de milho e, às vezes, palma. Comeu como um condenado à morte em sua última refeição. Edith acompanhava tudo com satisfação, mas sabia que lá pela terceira refeição da menina seria o momento de começar a ensinar-lhe boas maneiras.

Saíram às compras e Edith encheu a pequena Angeline de luxury. Não é luxúria, uma mãe que se preze não deseja luxúria a uma filha de onze anos de idade. Também não é inglês, que, embora domine perfeitamente, além do francês e do espanhol, todos aprendidos através de velhos clientes, para nossa mais nova mamãe, trata-se de uma língua bárbaros.

Quando Edith ouviu da boca de um cliente francês que luxury, do francês, tinha algo a ver com Luxo, não luxúria, apaixonou-se pela expressão, ao ponto de, como já sabemos, tatuá-la no braço, juntando-se às outras cinco tatuagens que carrega pelo corpo: uma borboleta amarela na nuca, um pequeno diabo com traços infantis no pé direito, um sagrado coração de Jesus partido ao meio na coxa esquerda, o símbolo da reciclagem nas costas e, imitando um carimbo, a expressão “Made in World” no abdômen.