quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Mistério da Rosa - 4º Mistério - Contemplamos o Encontro da Duas Rosas

Cidade louca, de milhões de carros e outros milhões de pessoas. Nem mesmo em suas maiores divagações Josefa imaginava que o mundo pudesse ter tanta gente. E também havia prédios e ruas de asfalto, algo que ela nunca sonhara. O calor abafado, como se as poucas lufadas de vento carregassem toda a umidade dos suores das vidas alheias para dentro das entranhas, era diferente do calor do sertão, seco, quase ácido. Diante deste calor, Josefa sentia aos poucos a pele cobrir-se de uma oleosidade viscosa, diferente do suor em bicas que desce pela testa no calor sertão.

Durante a viagem Josefa limitou-se a falar apenas que não chamava-se Maria, mas ao deparar-se com o mar, colou o rosto no vidro do carro e não lembrou-se de corrigir novamente o seu condutor ao ouvir “Bem-vinda ao Recife, Maria”.

Nada como o ver o mar pela primeira vez. Para muitos esta experiência não pode ser descrita simplesmente pelo fato de não recordarem-se, tratando o mar como uma trivialidade qualquer da vida. Mas para alguém que tem o mínimo de consciência que é um ser no mundo, estar diante daquela imensidão esverdeada, de eterno movimento e eterno comprimento, é como estar diante de uma divindade e adquirir a certeza de que o infinito é algo possível.

Atravessaram uma ponte e adentraram um bairro de prédios antigos, com um certo ar de aristocracia decadente que encanta aos olhos. Pararam diante de um discreto estabelecimento e desceram. Era um bar que estava vazio, como geralmente fica durante o dia, diferentemente das noites. O filho do prefeito gritou:

-Demoiselle!

-Essa voz é de calango vindo de longe.- respondeu uma voz feminina.

Josefa assustou-se com imagem que surgiu, pois não conseguia definir o sexo daquela criatura. Era um ser negro, alto, muito alto, com braços forte, como uma tatuagem no braço esquerdo com a palavra “luxury”, embora Josefa não soubesse ler. Os cabelos eram compridos e lisos, com ao menos cinco tonalidades diferentes de loiro, além de enormes olhos azuis. Vestia um quimono japonês de seda da cor rosa, com aberturas dos dois lados das pernas, que sob um olhar mais atento, via-se que realmente vestia apenas o quimono:

-Calanguinho querido, o que o traz à nossa querida metrópole. Cansou de comer palma na janta?-

-Me dá o de sempre, e o mesmo para a minha convidada.

-Uísque duplo, sem gelo e um dedo de água. Nossa! Criatividade nunca foi o seu forte. Mas diga-me calango, esta bonitinha é maior de idade?

-Eu pago o dela adiantado.- respondeu retirando o dinheiro da carteira.

-Ótimo, assim a gente conversa.- virou para Josefa e falou, enquanto preparava as bebidas.- E você bonitinha, como é seu nome?

Maria não respondeu.

-Tímida, não? Bem, na ausência de algo melhor, vou te chamar de Maria. Mas para conhecer alguém de verdade, Maria, é preciso olhar nos olhos. Vem cá que eu quero te olhar bem de perto.

As mãos imensas passaram por cima do balcão, afastaram os cabelos, e com uma delicadeza incompatível com o tamanho daquelas mãos, seguraram as faces de Josefa, erguendo o seu rosto de forma que os olhos encontraram-se:

-Hmmm! Medo. Já vi tudo.- serviu os drinques.- Mais uma que tem um trauma qualquer, que eu não tenho a intenção de saber, porque é traumático demais, até pra mim, que acarreta em qualquer tipo de retração sexual, que, de duas uma: ou torna-se ninfomaníaca, que não é o seu caso, ou torna-se frígida, achando que orgasmo é algo meramente teórico. Mas a titia aqui resolve tudo, meu bem, e eu gostei de você. Agora vai, bebe.

Josefa não entendeu nada do que acabara de escutar, mas tudo soou engraçado. Pegou o copo, mas ao sentir o cheiro sentiu-se nauseada e afastou o copo:

-Sabia que você não era disso, criança. Me dá isso.- entornou o copo de uma só vez – Mas sei algo digno desta sua beleza pura.- Virou-se, pegou uma garrafa verde, uma lata azul, gelo, limão, e começou a preparar outro drinque – Diga-me calango, para onde vai levar esta bela criança?

-Vou levá-la para a casa de um tio meu ,para trabalhar como faxineira.

-NÃO! NUNCA!- Protestou o ser – Não posso deixar uma beleza como esta desperdiçada assim. Viver lavando, esfregando e lambendo o chão que seu tio pisa só vai servir apara encher estas mãos lindas de calo, além de uma gravidez indesejada antes dos quinze, de autoria desconhecida. Eu vou criá-la.

-Não posso, meu tio está nos esperando...

-Querido, uma cidade deste tamanho não vai faltar gente com talento para ser faxineira. Passa lá por Boa Viagem, tem um monte destes talentos esparramados na areia, besuntadas de óleo barato desde as dez da manhã. E é bom ir logo antes que uma delas caia na água e cause um desastre ambiental.

-E o prejuízo da viagem?

O ser encheu os olhos azuis de ódio, e com uma voz máscula, como um verdadeiro trovão, arrancada de dentro das entranhas falou:

-Você vem aqui, bebe de graça e me vem falar de prejuízo? Some daqui calango!- e com a voz fina – Antes que eu conte para esta criança alguns segredos seus de ordem sexual.

O rapaz corou, e explicitamente sem graça, levantou-se e saiu do bar. As duas riram, e então o ser entregou o copo com o novo drinque para Josefa:

-Tome criança.

O cheiro era bom, algo como rosas, pequenas bolhas corriam pelo líquido. A menina tomou, e sorrindo disse:

-É bom!

-Nossa! Você fala, bonitinha! Isso é gin, sabia que você ia gostar.- afagou o rosto de Josefa e perguntou – Como é seu nome?

-Josefa Severina.- O ser riu alto e falou:

-Meu Deus! Ninguém trepa com alguém chamada Josefa Severina. A partir de hoje, seu nome é Angeline, e você será minha filha. Eu sempre quis ser mãe, sabia Angeline? Vou fazer de você uma lady.

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