quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mistério da Rosa - 9° Mistério - O Sonho da Rosa

A menina caminhava pelo seu quarto. Perambulava em círculos pela cama esperando a insônia findar-se. Estranhamente tudo era silêncio. Sim, estranhamente, pois de todas as ruas do Recife Antigo, a única que jamais silencia-se é a Rua da Moeda. Lá sempre há os murmúrios ébrios dos perdidos, os gritos da alegria passageira de uma noite regada a cerveja e os diálogos oriundos das transações dos que vendem fuga da realidade aos discretos compradores de ilusões.

Por suas íris amareladas entrava a escassa luz da vela acesa em um altar improvisado cheio de santos remendados, objetos de sua eterna devoção, para os quais rezava as preces de todos os dias: que nunca falte pão, proteção e gin em sua vida, além do singelo pedido perdão dos pecados que cometera e que ainda cometeria. Antes um perdão antecipado que um pecado não remido por esquecimento do pecador.

Parou diante do espelho, longo, de corpo inteiro. Como havia mudado a menina ingênua, assustada e cheia de dores que chegara há cinco anos. Um corpo jovem e esguio de uma mulher completa resplandecia no reflexo dos olhos amarelos. Sua pele de ébano brilhava e cheirava à juventude e pêssegos. Jamais tocada, ao menos voluntariamente, por um homem, seus olhos não conservavam a tristeza perene dos olhos das virgens, mas exalava a frieza e as convicções de uma mulher já feita.

De repente, do espelho saiu uma luz branca que envolveu todo o quarto. A menina sentiu seu corpo suspender-se no ar e ouviu o barulho do espelho partindo-se em milhões de pedaços. De onde estava o reflexo de seu corpo, surgiram rosas e mais rosas.

Um dos ramos cresceu mais e aproximou-se do rosto da menina. Nele, uma lagarta arrastava-se vagarosamente. Parou. Envolveu-se em casulo marrom e as asas amarelas de uma borboleta, do tamanho de um punho cerrado, surgiu, rasgando as paredes frágeis do casulo. A borboleta voou por sobre a menina, pousando depois sobre seu ombro esquerdo.

A menina ouviu o sussurro de um pombo. Olhou para o lado e apenas via o vazio da imensidão branca. Ao tornar a vista para a borboleta, esta não estava mais lá, mas sim um pombo perfeitamente branco que quase confundia-se com a luz. O pombo voou e explodiu em uma imensidão de estrelas douradas.

À sua frente surgiu uma legião de anjos parados e ajoelhados diante de sua figura. Um deles levantou-se, escondendo o rosto com as asas, aproximou-se da menina e disse:

-É chegado o dia da glória da filha do sertão. É chegado o dia do cravo tornar-se rosa. É chegado o dia que a rosa sangrará, ferida em seu próprio espinho. É chegado o dia da gêmea da mulher de Magdala. É chegado o dia da amada do Senhor. É chegado o dia do orvalho novamente molhar a terra seca e dos homens encontrarem consolo para as amarguras da vida, todas oriundas do pecado primordial, que há de sempre acompanhar a cria de Adão. Sim, o consolo virá, mas virá dos braços, das mãos e das dores da filha de Eva. – E o anjo novamente prostrou-se.

Por trás a menina ouviu um choro. Ao virar-se, deparou com uma imagem que vira quando mais jovem em uma igreja. Uma mulher chorava aos pés de um homem pregado em uma cruz. A mulher chorava um choro calmo, mas que deixava resplandecer seu desgosto e, acima de tudo, sua solidão. A mulher beijava os pés do homem, sujando suas mãos e rosto no sangue de um vermelho vivo que escorria por todo o corpo ferido e ultrajado do homem. A mulher recompôs-se, virou para trás, com seu rosto manchado e mãos sujas, olhando para e menina. Aproximou-se e tomou-lhe as mãos:

-Minha gêmea. É chegado o momento dos homens reverem os mistérios dos milagres explícitos. Para eles não basta apenas o milagre da vida. Mas antes – a mulher estendeu-lhe um fruto vermelho, da mesma cor do sangue do homem – o conhecimento. – A menina tomou o fruto e comeu – Agora, a purificação no sangue do Cordeiro.

A mulher conduziu a menina pelas mãos esquerda até o homem crucificado. Diante dele, ao ver a expressão vazia dos olhos já mortos do crucificado, a menina lembrou-se de ter visto esta mesma expressão nos olhos de uma mulher que um dia chamara por mãe, cujo rosto já não lembrava tão bem, pois era apenas uma bruma, um esboço, uma expectativa de lembrança. Jazem os homens, jazem também as lembranças.

A menina fechou os olhos e tocou os pés do homem com os lábios. Podia sentir o sangue, ainda quente, manchar sua boca. Tocou os pés com as mãos e encostou a face nos mesmos, como quem recosta o rosto no colo dos consoladores. Era sangue, vermelho, vivo, como o mesmo sangue que corria em suas veias. O sangue do cordeiro era acima de tudo o sangue de um homem. Quem banha-se em sangue? O que há de pureza no sangue de um homem? Mas a menina não pensava, apenas sentia o sangue que manchava-lhe mãos, faces, boca, braços, cabelos e seios. Olhou para cima para rever o homem. Não era um homem. Não era o sangue de um homem. Era o sangue de uma mulher. Também não era apenas uma mulher. Era o sangue dela mesma. Seu corpo pendia morto na cruz. Era o sangue da menina. Era o sangue de Angeline.

Angelina acordou. Foi um sonho. Angeline tem dezesseis anos. Sua boca tem gosto de sangue. Angeline levantou as cobertas e viu sangue na cama, entre suas pernas. Mas este sangue ela já conhecia, e ao vê-lo, uma única palavra saiu de sua boca:

-Porra!-

O quarto cheirava a algo. O quarto cheirava a mirra. O quarto cheirava a morte.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Mistério da Rosa - 8° Mistério - O Começo do Desabrochar

Corriam os dias e crescia a menina em beleza e sabedoria a olhos vistos. Durante as manhãs tomava aulas de escrita, francês e boas maneiras, lecionadas pela própria mãe. Durante as tardes ia-se à praia contemplar a imensidão do mar que adentrava seus olhos amarelos. Tudo mudara em sua vida. Pouco lembrava do sertão, talvez apenas a imensidão seca que parecia abraçar todo o mundo. Mas Angeline tinha a ligeira impressão que apenas o mar seria capaz de abraçar o mundo.

Cinco anos passaram-se desde a sua chegada ao Maison Rose. A mãe jamais a mandou à escola, pois segundo a mesma, não havia nada de útil que pudesse ser ensinado por lá:

-Uma mulher nunca será mais digna por saber trigonometria.

-E o que é trigonometria, mãe?

-Algo que Edith Piaf nunca precisou saber para brilhar, então não importa.

Chamava La mére por mãe com mais naturalidade que antes, embora ainda sentisse em seu coração uma certa ponta de culpa por ter dado tal alcunha a uma mulher que não a tinha gerado. Mas sentia-se filha e acima de tudo sentia-se confortada pelos instintos maternos de Edith, então, ali estava alguém digna de chamar-se mãe.

Desde os primeiros dias acostumara-se à rotina da casa, embora não participasse da mesma. Sempre ao anoitecer, Edith a recolhia para o primeiro andar do recinto, onde estabeleceu-se a sua residência. Era um espaço que englobava cozinha, uma pequena sala, um banheiro e dois quartos, nos quais dormiam mãe e filha separadamente. Durante a noite, descia as escadas às escondidas e por meio de uma fresta na porta de tábuas brechava o movimento do bar. A vista de lá dava direto para algumas cadeiras enfileiradas, nas quais sentavam-se homens olhando em determinada direção, com olhos vazios e embriagados. Angeline não sabia o que olhavam. Havia também uma mulher que sentava-se sozinha, sempre bem vestida e fumando cigarros que a mesma enrolava nos guardanapos que carregavam em letras rosas o nome do recinto. Olhava na mesma direção com olhos em brasas, exalando vida pelos mesmos, diferente dos homens. Às vezes a mesma era saudada por Edith que a cumprimentava com fervor.

No apartamento Edith também improvisou um altar com os restos de santos de Angeline, onde todas as noites, antes de dormir, a menina acendia uma vela e fazia suas orações, segurada ao rosário que a primeira mãe lhe dera. Sempre que a via nesta ocasião, Edith ajoelhava-se ao seu lado e a lembrava para rezar pelo bom movimento do estabelecimento, à saúde de suas funcionárias e pedia a Deus que abençoasse a todos os produtores de gin, para que nunca lhes faltasse ânimo para a produção do mesmo, e que esta bebida nunca faltasse em seu bar.

Gin era a bebida sagrada desta unidade familiar. Como forma de aumentar os laços entre mãe e filha, todas as tardes Edith sentava-se junto da filha perto da janela que dava para a Rua da Moeda, ambas com sua dose na mão, fumando cigarros em enormes piteiras, divagando sobre o dia e sobre as expectativas que tinham sobre a vida:

-Semana que vem é seu aniversário, Angeline. Dezesseis anos. Tenho que pensar em algo para lhe dar nesta data tão especial.

-Pensava que especial era os quinze anos.

-Meras convenções. Dezesseis anos é a idade decisiva do afloramento da beleza da mulher. Se uma mulher continua feia aos dezesseis, assim será por toda a sua vida.

Edith ergueu o copo e mãe e filha brindaram:

-Não será o seu caso, meu bem.-

Beberam. Edith serviu-as de outra dose e continuou:

-Dezesseis anos. Ah, minha filha, parece que foi ontem que você chegou aqui. Raquítica, anêmica, trazendo no corpo ainda o cheiro da poeira e da seca do sertão. Uma pequena jóia bruta que caiu nas mãos do melhor ourives da terra. No dia do seu aniversário haverá um novo passo em nossa caminhada para torná-la a mais bela mulher do mundo: vai tornar-se loira.

Angeline arregalou os olhos e perguntou-lho o por quê. Afinal de contas, gostava dos seus longos e negros cabelos cacheados:

-Ora, meu bem, toda mulher deveria ser loira. Pelo menos uma vez na vida. Principalmente se estiver com um homem. É uma questão de status. Um homem com uma loira ao lado é outra coisa. Uma loira não é apenas uma mulher. Uma loira é uma loira, as outras são apenas mulheres.

Angeline sorriu e assentiu. Sempre soube que tinha como mãe a mulher mais sábia do mundo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Mistério da Rosa - 7° Mistério - Profeta da Rosa



Naqueles dias andava um homem pelas ruas do Recife. Vestia farrapos do que um dia foi uma camisa roxa, bermuda jeans e um boné, que também um dia foi verde e outros era um roupão azul com divino bordado. Ele carregava nas mãos um longo cajado, um estandarte com uma rosa bordada e os restos mortais de uma bíblia que encontrara no meio do lixo em suas andanças em meio ao bairro da Bomba do Hemetério, sobrevivendo do que catava no lixo e dos centavos que lhe oferecia a caridade alheia, com os quais comprava seus goles de aguardente.

Caminhava pelas ruas, adentrava os metrôs, andarilhava pela praia, bradando sempre em alta voz em meio a ouvidos surdos tão leigos:

-Há de chegar o dia da glória da filha do sertão. Gêmea da mulher de Magdala, aquela que beijou os pés do Nosso Senhor. Ela será banhada no sangue do Cordeiro e surgirá revestida em glória, como a flor do mandacaru, que é doçura em meio a dor dos espinhos. Tocada por um anjo, mas pura como a Virgem Maria, seu nome um dia será esquecido na imensidão do tempo, mas seus feitos estarão nas lembranças dos homens, que espalharão sua história por mais três gerações além desta. Depois, estas lembranças vão secar como o pasto verde no tempo de estiagem, cuja ausência mata o gado e entristece os olhos do homem, ficando na sua cabeça a saudade do frescor do orvalho e do canto da asa branca. No fundo dos seus olhos de gato do mato brilha a chama da fogueira da dor, e este mesmo fogo santo queimará o seu coração, e das cinzas brotará uma pétala de sangue.

Ninguém o ouvia. Tudo no fim era o silêncio. E no silêncio, Damião ouvia a voz do universo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mistério da Rosa - 6° Mistério - Rosa-mãe e seus signos

Já era manhã quando Angeline foi acordada pelas suaves mãos de Edith:

-Bom dia minha filha, dormiu bem?

Entorpecida com o sono que sempre demora-se a deixar de ser um fardo em nossos olhos, espreguiçou-se e respondeu:

-Sim, Edith.

-Não filha. Para você não é e nunca será Edith. Serei sempre sua mãe. Vou perguntar novamente. Dormiu bem, minha filha?

Não é todo dia que canonizamos alguém ao ponto de chamá-la por mãe. No princípio é um jogo de repetição. Uma mulher que olha nos olhos de um bebê e sempre repete a palavra, bem como todos que cercam a criança, em sua frente, abrem mão de um pouco da individualidade da mulher que a tem nos braços e também a chamam de mãe. Então, com o passar do tempo, a criança chamará a mulher por mãe, e apenas ela o fará, todos os outros voltam às antigas alcunhas. É o fim do catecismo. Mas aqui está Angeline em uma terra desconhecida, com suas recentes descobertas sobre qual o tamanho do infinito após ver o mar, com uma mulher que encarnou erroneamente em um corpo masculino exigindo sua beatificação a um posto exclusivo. Diz-se muito que pai é quem cria, mas trata-se de uma prática inaplicável às mães. Um pouco de dúvida, disfarçada pelo sono e, enfim, duas palavras:

-Sim, mãe.

Edith sorriu e respondeu:

-Não foi natural, mas logo você vai se acostumar. Bem, minha filha, nada de gin agora. Café da manhã. Breakfast. Le petit lunch. E depois, programa de mulheres. Vamos às compras. Filha de Edith Stephanie transpira glamour, luxury e beleza. Bem, isso por enquanto, depois você vai transpirar outras coisas, mas tudo em seu tempo.

Angeline não imaginava que houvesse comida no mundo além de farinha, feijão, macaxeira, fubá de milho e, às vezes, palma. Comeu como um condenado à morte em sua última refeição. Edith acompanhava tudo com satisfação, mas sabia que lá pela terceira refeição da menina seria o momento de começar a ensinar-lhe boas maneiras.

Saíram às compras e Edith encheu a pequena Angeline de luxury. Não é luxúria, uma mãe que se preze não deseja luxúria a uma filha de onze anos de idade. Também não é inglês, que, embora domine perfeitamente, além do francês e do espanhol, todos aprendidos através de velhos clientes, para nossa mais nova mamãe, trata-se de uma língua bárbaros.

Quando Edith ouviu da boca de um cliente francês que luxury, do francês, tinha algo a ver com Luxo, não luxúria, apaixonou-se pela expressão, ao ponto de, como já sabemos, tatuá-la no braço, juntando-se às outras cinco tatuagens que carrega pelo corpo: uma borboleta amarela na nuca, um pequeno diabo com traços infantis no pé direito, um sagrado coração de Jesus partido ao meio na coxa esquerda, o símbolo da reciclagem nas costas e, imitando um carimbo, a expressão “Made in World” no abdômen.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Mistério da Rosa - 5° Mistério - Contemplamos o Devaneio da Rosa-mãe

A menina não tinha costume de beber e logo adormeceu, também por conta do cansaço da desgastante viagem de carro por mais de oito horas do sertão até o litoral. Então, finalmente Edith Stephanie, dona do bar conhecido por Maison Rose, encontrava-se sozinha. As tardes eram momentos cruciais, era quando todas as suas meninas dormiam, após a extenuante noite e a manhã de serviço para por todo o local em ordem novamente.

Sentou-se em uma cadeira perto de uma janela, de onde podia ver toda a movimentação da Rua da Moeda. Acendeu um cigarro, bebeu um pouco de vinho e pôs-se a pensar. O que a atraiu tanto naquela menina que a fez sentir-se como uma verdadeira mãe, a estender os braços para consolar quando apiedada de sua cria? Mas ela já sabia. No fundo dos olhos de Angeline, Edith viu o mesmo olhar de desolação que conservou nos olhos por um bom tempo, desde a infância no sertão, até a adolescência conturbada nas ruas do Recife. Edith sabe o que estar à deriva, ou ainda, sabe o que é caminhar por uma estrada que sabe que não vai chegar a lugar nenhum, apenas será uma eterna repetição de uma mesma paisagem.

Mais um gole de vinho e lembrou-se também que não teve a chance de conhecer os pais. Foi criada pelos avôs. O avô era caseiro de uma rica fazenda, pertencente a um homem que conhecera por toda a vida apenas por nome. A avó era mais uma Maria oriunda de alguma terra seca e sem esperança, onde não se questiona porque se vive, apenas vive-se, tal qual um pé de palma: sem beleza, a dar poucos frutos, criando espinho para tentar sobreviver, esperando secar e morrer murcho e castigado pelo memso Sol que espalha a vida, ou ainda, ser ceifado sem aviso pelas mãos dos homens e suas ferramentas de morte, pois raras são as ferramentas da mão dos homens que espalham a vida, mas muitas são as que a tiram.

O pai morreu quando ainda era um bebê, por conta de uma dívida causada pela fé depositada nas mazeladas faces de um bozó que teimava em virar os lados maiores para longe da vista do homem que o atirava, ligeiramente embriagado, sobre uma rústica e única, mesa do bar de Dona Cibilina, ponto de encontro dos homens da vila, que lá buscavam saciar seus instintos mais primitivos de fornicação, competição e alcoolismo. Sim, alcoolismo antes de ser um vício é um instinto. Toda a humanidade está fadada a ser um alcoólatra em potencial, tudo dependerá sempre das circunstâncias do seu primeiro gole.

Pouco sabia sobre a mãe, talvez apenas seu nome: Maria do Rosário. Um dia ouviu a avó conversando com o marido, que esbravejava xingamentos à filha quem um dia fugiu, deixando para trás o filho e o marido. A avó tentava em vão defender a filha. Mesmo longe dos olhos de Deus e dos homens, uma mulher sempre compreenderá a outra, e a avó de Edith, no fundo admirava a coragem que teve a filha em fugir para o sul, em busca de qualquer tábua de salvação que a tirasse deste destino de cartas marcadas que rondava as mulheres daquele vilarejo.

Edith levantou-se da cadeira, andou pelo salão observando cada detalhe do lugar. Arrumou algumas garrafas que estavam desalinhadas no bar, então aproximou-se de um enorme espelho que estendia-se por toda a parede por trás de um pequeno palco localizado no lado esquerdo da porta de entrada. Olhou-se por um tempo, ergueu a mão direita em direção de sua face esquerda, deslizou a mão pelo pescoço, segurou o seio esquerdo, acendeu outro cigarro e perguntou em um sussurro:

-Por onde anda hoje Joseildo, Edith?

Voltou ao bar, dirigiu-se ao balcão que lhe servia de caixa, abriu a gaveta, retirou um carteira de identidade, olhou a foto, tentou lembrar daquele rosto, então leu o nome: Joseildo Fernandes da Silva. Tragou o cigarro novamente e disse:

-De alguma forma, você está morto. Acho que abortei você, não te deixei nascer. E por mais mulher que eu seja, Edith será sempre uma montagem, e você, um fantasma.

Quando ainda era a criança e tinha por nome Joseildo, incerta de sua condição de ser-no-mundo, Edith conservou em sua alma por uma das meninas que trabalhava no bar de Dona Cibilina algo próximo de uma figura materna. Era conhecida como Stephanie, a única loira em um raio de trinta léguas daquela região, e tal como se pede nesta profissão, Stephanie era apenas um nome falso.

Naquela época, o pequeno Joseildo corria durante o dia para o bar, entrava pela porta dos fundos, dirigia-se a um dos quartos, onde a bela Stephanie já o esperava, e entregava-se ao maior prazer que tinha na época. Passavam a tarde toda provando os vestidos de Dona Cibilina, maquiando um ao outro e trocando confidências.

Edith lembrou neste instante de uma tarde, quando um dia ouvira de Stephanie as palavras que mudariam de vez a sua vida. Naquele dia, Joseildo viu um vaqueiro tomando banho sozinho, nu em pelo, em um açude próximo. Escondeu-se atrás de um espinheiro e ficou observando o homem a banhar-se. Já de tarde, no quarto com Stephanie, Joseildo trajava apenas um lingerie vermelha e um batom da mesma cor. Confessou o que sentiu ao ver aquele caboclo, e, após um momento de silêncio, disse:

-Não me sinto homem. Por que não nasci mulher?

Nua sobre a cama e os lençóis imundos, fumando um cigarro de palha, Stephanie respondeu:

-E o que realmente te faz ser um homem? Você pensa como uma mulher, comporta-se como uma mulher, e acima de tudo, você deseja como uma mulher. Não são os santos, nem os homens que determinam quem você realmente é, mas a voz que sussurra ao seu ouvido quando você está sozinho...- soltou suavemente a fumaça e complementou – ou sozinha.-

Esta conversa ocorreu há exatos vinte e sete anos, e desde então, Edith sempre teve a certeza que era uma mulher. Bastava apenas abandonar a alma de quem um dia foi Joseildo em qualquer estrada deserta, para que esta alma definhasse e morresse, para deixar aflorar o perfume de um novo ser, uma nova mulher a pisar sobre o mundo, pois afinal, muitas são as vantagens em ser mulher, algumas são: vestir-se bem em qualquer situação, reparar em todos os detalhes das outras pessoas, usar salto alto, ter peitos, mas acima de qualquer coisa uma mulher pode ser chamada de mãe, palavra sagrada que nem a Deus se destina.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

CONTINUAÇÃO

Outrora Josefa, agora Angeline, mas ainda uma criança, a menina abaixou a cabeça, pensou uma pouco e então falou:

-Ele disse que toda mulher deveria ser Maria.

-Sim minha filha, toda mulher deve ser Maria, e assim como ela, toda mulher deve ser cheia de graça. Quer que eu te conte um segredo sobre o gin?

A menina balançou a cabeça afirmativamente, enquanto o ser tomou uma dose de gin puro:

-Angeline, o gin é muito doce, mas também muito forte, por isso muita gente não gosta de gin. Mas assim também é a vida. A vida é muito dura, mas também é muito bela, às vezes mais dura que bela, como gin barato. Por conta disto, nem todo mundo gosta da vida. Então, minha filha, tenha certeza, se alguém gosta de gin, é porque gosta muito de viver.

As duas riram. Era a primeira gargalhada sincera de Angeline em meses:

-Então, uma vez que o gin simboliza a vida, tenha certeza: se esta bebida fosse vermelha, não molharíamos hóstia em vinho.

E desabaram-se a rir novamente.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Mistério da Rosa - 4º Mistério - Contemplamos o Encontro da Duas Rosas

Cidade louca, de milhões de carros e outros milhões de pessoas. Nem mesmo em suas maiores divagações Josefa imaginava que o mundo pudesse ter tanta gente. E também havia prédios e ruas de asfalto, algo que ela nunca sonhara. O calor abafado, como se as poucas lufadas de vento carregassem toda a umidade dos suores das vidas alheias para dentro das entranhas, era diferente do calor do sertão, seco, quase ácido. Diante deste calor, Josefa sentia aos poucos a pele cobrir-se de uma oleosidade viscosa, diferente do suor em bicas que desce pela testa no calor sertão.

Durante a viagem Josefa limitou-se a falar apenas que não chamava-se Maria, mas ao deparar-se com o mar, colou o rosto no vidro do carro e não lembrou-se de corrigir novamente o seu condutor ao ouvir “Bem-vinda ao Recife, Maria”.

Nada como o ver o mar pela primeira vez. Para muitos esta experiência não pode ser descrita simplesmente pelo fato de não recordarem-se, tratando o mar como uma trivialidade qualquer da vida. Mas para alguém que tem o mínimo de consciência que é um ser no mundo, estar diante daquela imensidão esverdeada, de eterno movimento e eterno comprimento, é como estar diante de uma divindade e adquirir a certeza de que o infinito é algo possível.

Atravessaram uma ponte e adentraram um bairro de prédios antigos, com um certo ar de aristocracia decadente que encanta aos olhos. Pararam diante de um discreto estabelecimento e desceram. Era um bar que estava vazio, como geralmente fica durante o dia, diferentemente das noites. O filho do prefeito gritou:

-Demoiselle!

-Essa voz é de calango vindo de longe.- respondeu uma voz feminina.

Josefa assustou-se com imagem que surgiu, pois não conseguia definir o sexo daquela criatura. Era um ser negro, alto, muito alto, com braços forte, como uma tatuagem no braço esquerdo com a palavra “luxury”, embora Josefa não soubesse ler. Os cabelos eram compridos e lisos, com ao menos cinco tonalidades diferentes de loiro, além de enormes olhos azuis. Vestia um quimono japonês de seda da cor rosa, com aberturas dos dois lados das pernas, que sob um olhar mais atento, via-se que realmente vestia apenas o quimono:

-Calanguinho querido, o que o traz à nossa querida metrópole. Cansou de comer palma na janta?-

-Me dá o de sempre, e o mesmo para a minha convidada.

-Uísque duplo, sem gelo e um dedo de água. Nossa! Criatividade nunca foi o seu forte. Mas diga-me calango, esta bonitinha é maior de idade?

-Eu pago o dela adiantado.- respondeu retirando o dinheiro da carteira.

-Ótimo, assim a gente conversa.- virou para Josefa e falou, enquanto preparava as bebidas.- E você bonitinha, como é seu nome?

Maria não respondeu.

-Tímida, não? Bem, na ausência de algo melhor, vou te chamar de Maria. Mas para conhecer alguém de verdade, Maria, é preciso olhar nos olhos. Vem cá que eu quero te olhar bem de perto.

As mãos imensas passaram por cima do balcão, afastaram os cabelos, e com uma delicadeza incompatível com o tamanho daquelas mãos, seguraram as faces de Josefa, erguendo o seu rosto de forma que os olhos encontraram-se:

-Hmmm! Medo. Já vi tudo.- serviu os drinques.- Mais uma que tem um trauma qualquer, que eu não tenho a intenção de saber, porque é traumático demais, até pra mim, que acarreta em qualquer tipo de retração sexual, que, de duas uma: ou torna-se ninfomaníaca, que não é o seu caso, ou torna-se frígida, achando que orgasmo é algo meramente teórico. Mas a titia aqui resolve tudo, meu bem, e eu gostei de você. Agora vai, bebe.

Josefa não entendeu nada do que acabara de escutar, mas tudo soou engraçado. Pegou o copo, mas ao sentir o cheiro sentiu-se nauseada e afastou o copo:

-Sabia que você não era disso, criança. Me dá isso.- entornou o copo de uma só vez – Mas sei algo digno desta sua beleza pura.- Virou-se, pegou uma garrafa verde, uma lata azul, gelo, limão, e começou a preparar outro drinque – Diga-me calango, para onde vai levar esta bela criança?

-Vou levá-la para a casa de um tio meu ,para trabalhar como faxineira.

-NÃO! NUNCA!- Protestou o ser – Não posso deixar uma beleza como esta desperdiçada assim. Viver lavando, esfregando e lambendo o chão que seu tio pisa só vai servir apara encher estas mãos lindas de calo, além de uma gravidez indesejada antes dos quinze, de autoria desconhecida. Eu vou criá-la.

-Não posso, meu tio está nos esperando...

-Querido, uma cidade deste tamanho não vai faltar gente com talento para ser faxineira. Passa lá por Boa Viagem, tem um monte destes talentos esparramados na areia, besuntadas de óleo barato desde as dez da manhã. E é bom ir logo antes que uma delas caia na água e cause um desastre ambiental.

-E o prejuízo da viagem?

O ser encheu os olhos azuis de ódio, e com uma voz máscula, como um verdadeiro trovão, arrancada de dentro das entranhas falou:

-Você vem aqui, bebe de graça e me vem falar de prejuízo? Some daqui calango!- e com a voz fina – Antes que eu conte para esta criança alguns segredos seus de ordem sexual.

O rapaz corou, e explicitamente sem graça, levantou-se e saiu do bar. As duas riram, e então o ser entregou o copo com o novo drinque para Josefa:

-Tome criança.

O cheiro era bom, algo como rosas, pequenas bolhas corriam pelo líquido. A menina tomou, e sorrindo disse:

-É bom!

-Nossa! Você fala, bonitinha! Isso é gin, sabia que você ia gostar.- afagou o rosto de Josefa e perguntou – Como é seu nome?

-Josefa Severina.- O ser riu alto e falou:

-Meu Deus! Ninguém trepa com alguém chamada Josefa Severina. A partir de hoje, seu nome é Angeline, e você será minha filha. Eu sempre quis ser mãe, sabia Angeline? Vou fazer de você uma lady.