quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mistério da Rosa - 3º Mistério - Contemplamos o Punhal no Peito da Rosa

O pior não era a vergonha ou a dor entre suas pernas que duravam há três dias. Também não foi a enxurrada de descobertas, que de uma só vez descobriu ser filha de uma “mulher da vida” e não sabia mais quem era seu pai. O pior foi a humilhação que sentiu Josefa ao ter de varrer os restos das imagens dos santos, parte da herança deixada pela sua mãe, além da pele parda e do rosário, mas que acima de tudo eram as imagens de sua veneração. Recolheu as imagens com uma vassoura de palha e guardou-as todas em uma trouxa de pano.


Neste terceiro dia de espera, veio à sua casa um homem vistoso e de fala bonita, que Josefa vira algumas vezes a andar por aquelas bandas. Era o filho do prefeito da cidade, que aparecia a cada quatro anos com uma caderneta para anotar pedidos e algumas cestas básicas. O homem que um dia Josefa chamara de pai recepcionou o homem, trocou algumas palavras, recebeu certa quantia em dinheiro, mais especificamente cinco notas vermelhas com um pássaro desenhado nas costas, e entregou a menina aos cuidados do homem:

-Maria, venha.- disse o homem – você vai conhecer a cidade grande.

-Meu nome é Josefa.

-Não faz diferença. Por aqui vocês são todas marias

A menina entrou no carro, carregando sua trouxa de pano. Não havia motivos para despedidas e a imagem que ela guarda como um projeto de adeus é a imagem do pai tomando a velha cachaça, direto da garrafa, recostado sobre a porta de tábuas. Mas não imaginava Josefa que um dia voltaria à sua terra e veria aquele que um dia chamara de pai a clamar por sua vida, naquela que seria, tal qual Nossa Senhora das Dores, o punhal traspassado em seu coração:

-Você tem sorte, Maria. Vou te conseguir um emprego bom na cidade. Você até vai ver o mar.- falou o filho do prefeito ao entrar no carro.

-Meu nome é Josefa.

-Pois deveria ser Maria. Maria é a mãe de Deus, e toda mulher um dia vai ser Maria.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mistério da Rosa - 2º Mistério - A Verdade é Espinho

A primeira pá de areia foi a mais dolorida para Josefa, pois foi lançada sem respeito pelos coveiros diretamente sobre o rosto de sua mãe, sobre cuja cova não há quem chore. A última demão de terra já não foi sentida por Maria, cujas lembranças da mãe já precipitavam-se a desaparecer, pois a certeza do ser perdura apenas no presente e naquilo que vivo está. O resto é incerteza, e Josefa já não era tão certa quanto à imagem da mãe, seus trejeitos, tom de voz e nada mais. E assim encerrava-se mais um ciclo de um ser vivente que, assim como na vida, irá morrer lentamente nas lembranças dos vivos até não deixar vestígios de sua vida passada em um período que não chama-se mais de presente.
Josefa retorna com seus pés descalços ao casebre onde mora, lugar longe de ser chamado de lar, mas é onde pendura sua rede todas as noites e acende as velas dos santos ao fazer sua prece antes de dormir. Ao adentrar o casebre encontrou o pai entornando da garrafa os últimos goles de aguardente, parado diante do altar. A indecisão entre adentrar a casa ou aguardar enquanto a bebedeira do pai não acaba é logo substituída pelo pavor que invadiu o pouco de sobriedade emocional que ainda tinha quando viu o pai esmurrar o altar aos berros:
-Seus putos! A culpa é de vocês!-
Os olhos ébrios, mais de fúria que de álcool, do senhor Severino de Noca, homem tido como trabalhador e de boa índole, chocaram-se com os olhos petrificados de medo da menina que agarra as duas mãos ao rosário herdado da mãe. O homem ergue o dedo indicador da mão direita, calejada de enxada, aproxima-se lentamente da menina enquanto diz:
-Você, desgraçada, vai ter uma vida nova longe da minha vista, em um lugar que eu não saiba da sucedência do que tu faz. Vou levar você pra um trabalhar em um lugar que eu bem sei que aceitam meninas sem mãe, sem passado e sem futuro como você há de ser. Mas antes vou ver se você serve mesmo pra esse serviço.-
A menina sequer teve tempo para compreender tudo o que falara o homem que com as duas mãos agora agarrava os seus cabelos e a arremessava em direção à parede. Após um tapa estalado em sua face esquerda, a menina sentiu o vestido ceder de uma só vez. Foi quando recobrou um pouco das forças e gritou ao pai que parasse. Severino de Noca agarrou o pescoço da menina com uma das mãos e falou:
-Pai? Eu sou teu pai tanto quanto de uma cascavel que se arrasta nesta caatinga a morder os jumentos pelos pés! E é isso que você é: uma cascavel. Porque é nisso que dá chocar ovo alheio! Quando eu casei com a tua mãe, tu já estava naquela barriga. Sei disso porque só casei pelo dinheiro e pela mula que teu avô me deu, porque ele era homem honesto e não ia aceitar uma filha prenha, sabe-se lá de que diabo solto nesse mundo, sem casar. Então antes que tu morda meu pé, vou me livrar de você e da vergonha de nunca ter tido um filho meu pra perdurar meus dias nessa terra pra qual Deus virou a cara e deixou entregue ao capeta. E também pra compensar a falação dos outros, vou fazer o que devia ter feito há tempo! E não me chore, senão vai ver tua mãe é agora!-
O homem não prova da morte para em vida definir o quê é ela, então, como ente desconhecido, o homem teme morte, independente de onde esteja. Josefa acompanhava as vigílias dos mortos, viu os bezerros morrerem de sede em meio à sequidão das ramagens e por cima do chão rachado, e por mais que a sua mãe lhe dissesse que com a morte, íamos todos morar no céu, que é uma terra de água e leite em fartura e que vive-se em meio aos santos, perto principalmente das mão de Padre Cícero, seu padrinho, Josefa tinha medo que a morte fosse apenas um dormir pra sempre, o qual por mais que tente, não abrem-se os olhos. Então Josefa prendeu o choro na garganta, e de lá este apenas sairá no dia de sua glória.Em meio à dor e vergonha, Josefa, caída ao chão, com aquele que um dia chamara por pai entre as suas pernas, virou o rosto para o lado direito, fixou o olhar no rosário que tinha na mão direita, e com os dedos afastou algumas contas, segurou a cruz, e sob os gemidos começou murmurando: “Pai Nosso que estás no céu...”