A menina não tinha costume de beber e logo adormeceu, também por conta do cansaço da desgastante viagem de carro por mais de oito horas do sertão até o litoral. Então, finalmente Edith Stephanie, dona do bar conhecido por Maison Rose, encontrava-se sozinha. As tardes eram momentos cruciais, era quando todas as suas meninas dormiam, após a extenuante noite e a manhã de serviço para por todo o local em ordem novamente.
Sentou-se em uma cadeira perto de uma janela, de onde podia ver toda a movimentação da Rua da Moeda. Acendeu um cigarro, bebeu um pouco de vinho e pôs-se a pensar. O que a atraiu tanto naquela menina que a fez sentir-se como uma verdadeira mãe, a estender os braços para consolar quando apiedada de sua cria? Mas ela já sabia. No fundo dos olhos de Angeline, Edith viu o mesmo olhar de desolação que conservou nos olhos por um bom tempo, desde a infância no sertão, até a adolescência conturbada nas ruas do Recife. Edith sabe o que estar à deriva, ou ainda, sabe o que é caminhar por uma estrada que sabe que não vai chegar a lugar nenhum, apenas será uma eterna repetição de uma mesma paisagem.
Mais um gole de vinho e lembrou-se também que não teve a chance de conhecer os pais. Foi criada pelos avôs. O avô era caseiro de uma rica fazenda, pertencente a um homem que conhecera por toda a vida apenas por nome. A avó era mais uma Maria oriunda de alguma terra seca e sem esperança, onde não se questiona porque se vive, apenas vive-se, tal qual um pé de palma: sem beleza, a dar poucos frutos, criando espinho para tentar sobreviver, esperando secar e morrer murcho e castigado pelo memso Sol que espalha a vida, ou ainda, ser ceifado sem aviso pelas mãos dos homens e suas ferramentas de morte, pois raras são as ferramentas da mão dos homens que espalham a vida, mas muitas são as que a tiram.
O pai morreu quando ainda era um bebê, por conta de uma dívida causada pela fé depositada nas mazeladas faces de um bozó que teimava em virar os lados maiores para longe da vista do homem que o atirava, ligeiramente embriagado, sobre uma rústica e única, mesa do bar de Dona Cibilina, ponto de encontro dos homens da vila, que lá buscavam saciar seus instintos mais primitivos de fornicação, competição e alcoolismo. Sim, alcoolismo antes de ser um vício é um instinto. Toda a humanidade está fadada a ser um alcoólatra em potencial, tudo dependerá sempre das circunstâncias do seu primeiro gole.
Pouco sabia sobre a mãe, talvez apenas seu nome: Maria do Rosário. Um dia ouviu a avó conversando com o marido, que esbravejava xingamentos à filha quem um dia fugiu, deixando para trás o filho e o marido. A avó tentava em vão defender a filha. Mesmo longe dos olhos de Deus e dos homens, uma mulher sempre compreenderá a outra, e a avó de Edith, no fundo admirava a coragem que teve a filha em fugir para o sul, em busca de qualquer tábua de salvação que a tirasse deste destino de cartas marcadas que rondava as mulheres daquele vilarejo.
Edith levantou-se da cadeira, andou pelo salão observando cada detalhe do lugar. Arrumou algumas garrafas que estavam desalinhadas no bar, então aproximou-se de um enorme espelho que estendia-se por toda a parede por trás de um pequeno palco localizado no lado esquerdo da porta de entrada. Olhou-se por um tempo, ergueu a mão direita em direção de sua face esquerda, deslizou a mão pelo pescoço, segurou o seio esquerdo, acendeu outro cigarro e perguntou em um sussurro:
-Por onde anda hoje Joseildo, Edith?
Voltou ao bar, dirigiu-se ao balcão que lhe servia de caixa, abriu a gaveta, retirou um carteira de identidade, olhou a foto, tentou lembrar daquele rosto, então leu o nome: Joseildo Fernandes da Silva. Tragou o cigarro novamente e disse:
-De alguma forma, você está morto. Acho que abortei você, não te deixei nascer. E por mais mulher que eu seja, Edith será sempre uma montagem, e você, um fantasma.
Quando ainda era a criança e tinha por nome Joseildo, incerta de sua condição de ser-no-mundo, Edith conservou em sua alma por uma das meninas que trabalhava no bar de Dona Cibilina algo próximo de uma figura materna. Era conhecida como Stephanie, a única loira em um raio de trinta léguas daquela região, e tal como se pede nesta profissão, Stephanie era apenas um nome falso.
Naquela época, o pequeno Joseildo corria durante o dia para o bar, entrava pela porta dos fundos, dirigia-se a um dos quartos, onde a bela Stephanie já o esperava, e entregava-se ao maior prazer que tinha na época. Passavam a tarde toda provando os vestidos de Dona Cibilina, maquiando um ao outro e trocando confidências.
Edith lembrou neste instante de uma tarde, quando um dia ouvira de Stephanie as palavras que mudariam de vez a sua vida. Naquele dia, Joseildo viu um vaqueiro tomando banho sozinho, nu em pelo, em um açude próximo. Escondeu-se atrás de um espinheiro e ficou observando o homem a banhar-se. Já de tarde, no quarto com Stephanie, Joseildo trajava apenas um lingerie vermelha e um batom da mesma cor. Confessou o que sentiu ao ver aquele caboclo, e, após um momento de silêncio, disse:
-Não me sinto homem. Por que não nasci mulher?
Nua sobre a cama e os lençóis imundos, fumando um cigarro de palha, Stephanie respondeu:
-E o que realmente te faz ser um homem? Você pensa como uma mulher, comporta-se como uma mulher, e acima de tudo, você deseja como uma mulher. Não são os santos, nem os homens que determinam quem você realmente é, mas a voz que sussurra ao seu ouvido quando você está sozinho...- soltou suavemente a fumaça e complementou – ou sozinha.-
Esta conversa ocorreu há exatos vinte e sete anos, e desde então, Edith sempre teve a certeza que era uma mulher. Bastava apenas abandonar a alma de quem um dia foi Joseildo em qualquer estrada deserta, para que esta alma definhasse e morresse, para deixar aflorar o perfume de um novo ser, uma nova mulher a pisar sobre o mundo, pois afinal, muitas são as vantagens em ser mulher, algumas são: vestir-se bem em qualquer situação, reparar em todos os detalhes das outras pessoas, usar salto alto, ter peitos, mas acima de qualquer coisa uma mulher pode ser chamada de mãe, palavra sagrada que nem a Deus se destina.